Não verás país nenhum
Autor: Ignácio de Loyola Brandão (1936 - ), escritor e jornalista brasileiro.
Gênero: Romance.
Ano: 1981

Por outro lado, a leitura traz certo alívio; enquanto Souza (protagonista) lamenta tudo o que foi perdido e que nunca poderá ser recuperado, enquanto ele deseja ardentemente as coisas mais simples da vida (como sentir cair uma gota de chuva), nós ainda temos a possibilidade de desfrutar da natureza e criar um futuro diferente.
“(…) a gente carrega culpa, porque tem, você recebeu o mundo assim, e adaptou-se, deixou a responsabilidade para os outros, é mais fácil, não tentou mudar nada…” (p. 290)
Alguns trechos do livro
“Besteira, o que me interessa a corrida do tempo? Não existe nada a fazer com ele. Que importa a velocidade, se já não tenho uso para minha vida. Quem tem?” (p. 17)
“Saio da Casa dos Vídros de Água sempre abalado com o irreparável. Não em relação à minha vida. Ao mundo que me cerca, ao ponto a que as coisas chegaram”. (p. 19)
“Tudo funciona em torno da utilidade, conveniência ou não. Esta Casa talvez tenha sido a última obra considerada sem valor prático para a civilização”. (p. 20)
- Militecnos: “substituíram” os cientistas. Tecnocratas da nova geração. Emoções eliminadas, tornaram-se severamente calculistas.
“Tempos em que o povo passou a comer menos. A comer pior. Cada vez menos qualidade. Não chegamos a comer raízes, porque elas não existem mais. Esgotamos praticamente tudo. Dependemos das indústrias químicas governamentais ou do que é importado das fechadas reservas multinacionais”. (p. 31)
-Divisão em bairros a partir de classes, categorias sociais, profissões e hierarquias no esquema.
- A idéia de setorização nasceu em fins da década de 50, em Brasília, e agora ficou altamente desenvolvida. Mas antes o homem já circulava dentro de certos limites.
“ Duas coisas eram pior que o câncer para a Alta Hierarquia do Novo Exército: os espíritos negativistas e os comunistas. Eram caçados e isolados.” (p. 58)
- povo deixou de se interessar pelas más notícias.
“Nada pior do que a memória do gesto não realizado.” (p. 61)
- Países endividados, não há terras para plantio, tudo é importado de outros países.
- Dia obrigatório de compras - povo deve consumir para que as fábricas possam fabricar e não haja insidiosa recessão.
“Onde fica o homem dentro disso tudo? Qual a sua função dentro da natureza, do universo? Ele rege ou é regido? E este esforço tremendo que o homem fez durante séculos para ser dominador, o que detém o poder?” (p. 87)
- o homem quis modificar a estrutura do universo antes de compreendê-la.
“É triste chegar ao litoral e ver as cercas de concreto e farpado, isolando as áreas. O mar estagnado, negro. Praia? Se é que se pode chamar aquela área negra, espessa, oleosa de praia. Nem água do mar se consegue tirar, para tratamento e distribuição à população.” (p. 88)
- Fizeram tudo sem que houvesse uma revolução. Estávam iludidos e não prestaram atenção às coisas que aconteciam.
“Convencidos de que não havia problemas, aceitamos que vendessem trechos da Amazônia. Pequenos trechos, diziam. Áreas escolhidas por cientistas, para que não se alterassem os ecossistemas. Até que um dia, as fotos pelos satélites revelaram a devastação. Todo o miolo da floresta estava dizimado, irremediavelmente. O resto durou pouco, em alguns anos, o deserto tomou conta.” (p. 99)
- o Esquema era inteligente; negava e agia ocultamente.
“As secas definitivas vieram logo após o grande deserto amazônico. Um ano sem gota de água e as represas de São Paulo esgotaram. Apavorado, o povo fazia promessas, enchia as igrejas. Organizavam procissões, novenas, romarias. Inúteis. Poços artesianos começaram a ser abertos às pressas, às centenas.” (p. 108)
Das aves que atravessaram a Serra do Mar. “Quando mergulhavam no mar, voltavam com o corpo cheio de óleo. Ficava difícil de voar. As aves que chegaram aqui são heróicas. O último vôo. Chegaram, desceram, tornaram-se bichos de asas que não voariam mais. Com o sol, presume-se que o óleo endureceu, fechou os poros. Elas morreram, foram cobertas pela poeira, tornaram-se o que você vê aí”. (p. 125/126)
“Quando vi a primeira árvore cair, meu pai estava o meu lado. O barulho foi tão horrível que nem a presença dele impediu o meu susto. Chorei (…) Me lembro até hoje o horror que foi a árvore tombando.
Um gigante desprotegido, os pés cortados, solta de repente, desabando num ruído imenso. Choro, lamento, ódio, socorro, desespero, desamparo. Ao tombar, tive a impressão de que ela procurava se amparar nas outras. Se apoiar em arbustos frágeis, que se ofereciam impotentes.” (p. 131)
- Homem contra árvore = mano a mano.
Máquina contra árvore = poderio desenfreado.
- Árvore = união das trevas e da luz, símbolo da criação.
“ À medida que a mata caía, os animais se afastavam dos homens e do barulho. Se concentravam numa região, ali ficavam, como que à espera. Todos reunidos, solidários. Como que sabendo.
(…) Quando os animais saíam para o terreno limpo eram abatidos. Facilmente. Muita carne era comida ali mesmo. Outros salgavam, deixavam ao sol, levavam para casa. Havia os que se interessavam somente por peles de onça, ou couro de anta. No final do dia, sobravam ossos para os urubus.” (p. 135)
- migrações = povos expulsos das próprias terras.
“Quando as grandes calamidades passaram a acontecer, ninguém ficou nervoso, ninguém moveu uma palha. Agora estão assustados.” (p. 177)
“Lutei para pagar a casa, aceitei a troca pelo apartamento, briguei para arranjar emprego, aceitei o que me deram, apavorado com a perspectiva de não futuro. E foi exatamente ao não presente que cheguei. Olhando para atrás, vejo que vivi dentro de um não passado. E a conclusão é simplesmente terrível.” (p. 181)
“O Dêís, como o povo chamava lá em cima, eram os Decididamente Incompetentes. Você deve se lembrar, eles dominaram o país por seis anos. Três governos, cada um de dois anos. (…) Os Dêís não apenas não eram incompetentes para encherem os próprios bolsos. Se quisessem saberiam governar. No entanto, o Esquema estava manipulado de modo que os postos se mantivessem entre eles inacessíveis a qualquer cidadão.” (p. 189)
“Fomos nos habituando, de tal modo que passamos a pactuar com a tragédia, aceitando-a como cotidiano. Me espanta essa capacidade de acomodação da mentalidade, sua adaptação ao horror.” (p. 191)
“Até que chegou o Tempo Intolerável. Não dava mais para se expor ao sol. Você saía à rua, em alguns segundos tinha o rosto depilado, a pele descascava, a queimadura retorcia.” (p. 193)
“Humanizamos os objetos, fizemos deles os nossos representantes. Eles nos simbolizavam, definiam. Eram a nossa expressão. Eles eram nós. Transferimos, nos ligamos, promovemos um culto que nada mais foi que uma substituição deformadora.” (p. 226)
“Que loucuras poderíamos ter feito naquele quarto. Explorar um ao outro no limite máximo. Limite. Temos sempre barreiras em nossa cabeça. Poderíamos ter ido até o fim. Ou além dele, se soubéssemos o que é o fim. No entanto, em silêncio, concordávamos com aquela coisa morna.” (p. 240)
“Cada dia a hóstia se transformava mais e mais numa rodela de farinha sem gosto, não tinha nem o valor de uma bolachinha, tão delgada, tênue, inócua.” (p. 251)
“(…) a gente carrega culpa, porque tem, você recebeu o mundo assim, e adaptou-se, deixou a responsabilidade para os outros, é mais fácil, não tentou mudar nada…” (p. 290)
“Qualquer mudança tem de começar necessariamente dentro do homem. Para depois atingir o todo. A modificação externa, a alteração da sociedade, vem da transformação interior.” (p. 295)
“O processo de falação obedece a uma sequência invariável. Um primeiro momento, o da chamada denúncia. Alguém levanta o problema. Em seguida, uma fase delicada. A das vozes indignadas, governamentais ou não, que se erguem exigindo providências. O terceiro momento requer habilidade.
É a fase das promessas. Garante-se a formação de comissões de inquérito, promovem-se passeatas controladas, editoriais consentidos na imprensa, entrevistas categóricas. Este período é essencial, exige uma avalanche de falação contínua, exacerbada, exasperante. Falar até o total sufoco.” (p. 322)
“Admitir que este mero viver nos levará a um novo sentido da vida, novamente humano. A nossa essência reconquistada, retomada. Para anular o ter, valorizando o ser. Demolir o tento, logo existo. Ah, minhas utopias!” (p. 330)
“A vida inteira buscamos a compreensão através de informações enigmáticas. Imaginando complexas representações, procurando meios de penetrar no profundo.
E o real está na superfície, bóia à nossa vista. Tão simples, que recusamos. Estamos acostumados ao espelho da ilusão. Passamos o tempo em busca de algo que nos foi dado, à primeira vista. Não confiamos mais em nossas percepções, instituições. Nos afastamos do conhecimento primordial.” (p. 338)
“Pois o outro não passa daquilo que é realmente, mais a soma do que adiciono e moldo. Ao ser, junto, o que vejo, o que sinto, o que recebi, o que ela me doa a cada momento. E assim, ela é uma soma dela e de mim, intercambiada, transplantada.” (p. 350/351)
“O horror deixa de ser quando se transforma em cotidiano”. (p. 353)
Conversando com uma amiga sobre o modo de vida contemporâneo (e o futuro catastrófico que nos espera se as coisas continuarem no mesmo rumo), ela me indicou este livro. Escrito nos anos 80, seu título faz alusão ao poema "A pátria", de Olavo Bilac, que era estudado nas escolas no tempo em que eu ainda não era nascida.
Ao invés de falar da abundância de riquezas naturais, como Bilac, Ignácio descreve a dura vida num futuro em que a água é racionada, a comida é artificial e é impossível caminhar sob o sol sem morrer queimado, dentre tantos outros problemas. A leitura é chocante porque o passado que ele descreve se parece em muitos aspectos com o nosso presente: a construção de poços artesianos devido à falta de água, o desmatamento e a desertificação das florestas, o ar seco e poluído, o governo agindo na surdina até enriquecer e esgotar todos os recursos, a passividade da população diante de tudo isso... “Convencidos de que não havia problemas, aceitamos que vendessem trechos da Amazônia. Pequenos trechos, diziam. Áreas escolhidas por cientistas, para que não se alterassem os ecossistemas. Até que um dia, as fotos pelos satélites revelaram a devastação. Todo o miolo da floresta estava dizimado, irremediavelmente. O resto durou pouco, em alguns anos, o deserto tomou conta.” (p. 99)
A PÁTRIA
Ama, com fé e orgulho, a terra em que nasceste!
Criança! não verás nenhum país como este!
Olha que céu! que mar! que rios! que floresta!
A Natureza, aqui, perpetuamente em festa,
É um seio de mãe a transbordar carinhos.
Vê que vida há no chão! vê que vida há nos ninhos,
Que se balançam no ar, entre os ramos inquietos!
Vê que luz, que calor, que multidão de insetos!
Vê que grande extensão de matas, onde impera
Fecunda e luminosa, a eterna primavera!
Boa terra! jamais negou a quem trabalha
O pão que mata a fome, o teto que agasalha...
Quem com o seu suor a fecunda e umedece,
Vê pago o seui esforço, e é feliz, e enriquece!
Criança! não verás país nenhum como este:
Imita na grandeza a terra em que nasceste!
Olavo Bilac